RIVALIDADE

ACRILICO SOBRE TELA DE ALGODÃO 40/60 cm

ABRIL DE 2024

Trecho de A BATALHA SEM FIMAquilino Ribeiro

edição nº 1526 (1983) de Círculo dos Leitores págs:43-44

«Ao Vermoil, que especara a ver sair o barco, dentes a arruaçar para a água revolta, disse o Lázaro que rondava pela beira, indiferente à babugem da mareta:

- Senhor Manuel, foi grande temeridade atirar a companha pela borda com mar assim tão cavado...

O mestre franziu os lábios num sorriso que pretendia ser de mofa e lhe pôs a descoberto as gengivas carniceiras:

- Amigo, não sou rico como vós para mandar os homens à sirga com os primeiros chuviscos. Tenho mulher e filhos. O mar está bravo, cumpra-se a vontade de Deus!

O Vermoil rodou que a hasta prosseguia encarniçada, deixando a sua gente a rir da cara do Lázaro. Eram sempre assim, cães uns para os outros. Naquela praia atlântica, faminta e piolhosa, separada do mundo por léguas de floresta, as companhas eram rivais, fervendo reciprocamente em inveja e rancor. E por mais nada senão porque eram duas. Decerto havia interesses face a face. Não era, porém, com os pilhanços de quatro cascas de noz, operando furtivas e de salto como gatunos de galinhas, que se esgotava o mar, nem de fartura o peixe apodrecia na lota, desamparado de licitantes. Aquela rivalidade que abrangia uns e outros, escrivães, vareiros, caladores, regedores, numa palavra todos os marítimos e todas as mulheres dos marítimos, só tinha explicação na tendência que o homem experimenta, sobretudo o homem primário, de dilatar o campo moral, amando e detestando. As duas patuleias em que a praia se bandeava apenas se não moviam guerra aberta a calhau e faca porque os ódios da gente do mar se resolvem no impropério e na assuada. Mas em trabalhos e acrescentos, penas e folgares, estremavam-se a ponto de vestirem anjinhos e armarem andores à parte em festas e romarias.»