RANCOR
ACRILICO SOBRE TELA DE ALGODÃO 70/50 cm
OUTUBRO DE 2024
Trecho de «A BATALHA SEM FIM» – Aquilino Ribeiro
Publicado na edição 1526 de Círculo dos Leitores págs:184-185
"E ele foi lendo, saltitadamente, frases ou elementos de frases colhidas na Bíblia, perfumados e doces como favos de mel, embora mais corriqueiros que os seixinhos das praias: a rosa branca do Sáron, os merencórios peregrinos de Ernaús, a sombra avara dos tamarindos, o meigo rabi, a castelã loira de Magdal, a vinha de Nabote…
— Hem...? — berrou ele, como se o picassem em cicatriz mal curada.
— Conhece agora o nome do seu agressor? — proferiu o P.e Lúcio, glorioso.
Lá isso...
— Oiça, doutor juiz: em Portugal, actualmente, há apenas dois profanos que se servem do florilégio hebraico tão bem como Vossa Excelência do Código e eu do ripanço, o poeta Santa Clara, que tem a bênção do patriarca, e o Adolfo Serzedo, que tem prima tonsura. Isto da Vinha do Nabote, que não é o Ferro de Engomar, só podia acudir ao bico da pena dum dos dois. Ora, sendo o poeta Santa Clara, além de pessoa de bem, estranho ao meritíssimo juiz de Leiria, o...
— …o autor da velhacada foi o Serzedo. Sim, a sua dedução parece-me irrefragável, teologicamente irrefragável. Espere... Está-se-me fazendo luz no espírito. Atinou, foi ele.
E fora. Dias decorridos, o Palácio veio em público e raso lavar mãos do artigo da gazeta. A sua mágoa era não haver destorcido a meada a tempo e horas, que punha a faca ao peito do ministro e o traste tão cedo não assentava a rabadilha de oficial na poltrona da Conservatória. Ambos davam o apoio à ordem nova... teve de pôr pedra no assunto. Mesmo assim, ainda que o Serzedo desenvolvesse o maior fervor em ser-lhe agradável, como se tivesse a peito reparar um dano ou sustar espada a despedir golpe, sempre que encarava com ele, como agora, ficava-lhe o sangue a ferver."
Rui
Outubro de 2024