ACRILICO SOBRE TELA DE ALGODÃO 60/40 cm

JULHO DE 2024

Trecho de A BATALHA SEM FIMAquilino Ribeiro

edição nº 1526 (1983) Círculo dos Leitores págs. 105-106

«Era crente, nado e criado na lei divina, mas não santanário, e avesso a votos e penitências. Aos santos rezava quando rezava, e dessem-se por contentes em não fazer todas as encomendações a Deus. Deles, pois, não havia que esperar aceno ou rebate que o orientasse no caminho a seguir. Mais lhe valia jogar um vintém ao ar e — cara ou cruzes — assentar em sim ou não. Podia, ainda, apostar dum caso o desempate do negócio...

Naquele momento a torre do Coimbrão bateu, também, as ave-marias, medrosas, dir-se-ia lívidas, no céu gelado. Trémulas, liquescentes, pareceu ao Eudóxio que aquelas badaladas caíam como gotas de orvalho no purgatório em brasa. À semelhança do que via nas bandeiras das irmandades, nos retábulos, nos frontões de pedra que ladeiam os caminhos, as alminhas erguiam olhos súplices para os vivos. Gemeriam, rodeadas de chamas, erguendo na balsa de fogo, umas por cima das outras, os dedos tisnados. E, rendido à piedade mercê da imaginação, o Eudóxio pôs-se a desfiar padre-nossos atrás de padre-nossos, ave-marias e ave-marias sem conto. E, reza que reza, entregue do mesmo passo aos seus roedores cuidados, ocorreu-lhe fiar duma condicional em que entravam as alminhas atormentadas a solução do caso. Pois era a hora consagrada às almas, se dali até à igreja do Coimbrão encontrasse criatura do Senhor a rezar,prosseguia se não encontrasse, mandava a duna para o inferno.»