ESPERANÇA

ACRILICO SOBRE TELA DE ALGODÃO 60/90 cm

JUNHO DE 2024

Trecho de A BATALHA SEM FIMAquilino Ribeiro

edição nº 1526 (1983) de Círculo dos Leitores págs. 90-91

«Suarentos, negros, descalços, eram em pleno malhadoiro espelhos de resistência. Mas, sem tal exemplo a estimulá-los, todos à uma amargariam a jorna que cobravam e o vinho extra que bebiam. Divulgara-se o intuito da obra, e a esperança de serem contemplados na partilha do tesoiro dava-lhes alento inquebrantável. Os ralaços de marca mediam-se em brio com os diligentes; Marrazes, Passafome, Penela, Lavagante e muitos outros tão acirrados andavam que nem se permitiam roubar à faina magnífica o tempo de fumar o cigarrinho. Cobertos de andrajos, sujos de lama, lembravam nos dias de mormaço grandes e sôfregos besoiros a fossar em estrumeira rebolcada.

Com semelhante patuleia, o Eudóxio, que nutria fumaças de lidador, exaltava-se. Jogando o chapéu ao ar, mandava buscar na égua preta, a toda a brida, um odre de vinho. Quando o estafeta reluzia, de volta, nas raleiras da mata, um urro atroador rompia das gargantas assadas. Esgotavam mais depressa o verdial que a duna um chuvisco de Agosto. E volviam à tarefa com dobrado frenesim.

Com o rolar dos dias, os pescadores ergueram tendas, colmadas com velhos oleados e ramos. Chamaram mulheres e filhos e à sombra da mata nasceu uma sorte de arraial cigano, cheio de farrapagem, gritos e lumaréus. Ali forjicavam o comer e dormiam as noites glaciais, amassagados corpos com corpos em volta dum lume de tangos. De dia a garranada dos filhos, quase em coiro, picados das pulgas e das bexigas, gambiava nas dunas, e o seu chilreio de pardais misturava-se com o chap-chap das ferramentas a rasgar o areal.

Ardiam todos os olhos com a mesma chama; martelava em todas as cabeças o mesmo pensamento: o tesoiro! Era a glosa das mulheres, acocoradas no chão em felizarda e patética roda. Oh, iam dar um pontapé na maleita, ser limpas e fartas, poder comprar chapéus de veludo com espelhinho ou penas de canário conforme as lavradeiras que, montadas em seus jericos, trazem à ideia rainhas antigas, pendurar argolas nas orelhas, ir de farnel às romarias!»