CARÊNCIA

ACRILICO SOBRE TELA DE ALGODÃO 40/40 cm

AGOSTO DE 2024

Trecho de A BATALHA SEM FIMAquilino Ribeiro

Publicado na edição nº 1526 de Círculo dos Leitores págs.: 122-123

«— À d'el-rei, que roubam o que é meu! À d'el-rei!! Peça a peça, dez vezes perdida e recuperada esta, enfandegada aquela, à força de disputas reduzidas umas a fiapo, traçadas não poucas em motrecos, desapareceram as roupas. O último bando batalhava pela posse da última teia de tomentos, acesos entre si numa briga feroz de lobos. Puxava o cobiçoso por uma ponta, o invejoso por outra, e vários cainhos pelo meio, em movimentos opostos. O Cabrita, de Barros da Paz, sacou da naifa e pôs-se a talhar o seu quinhão. Mas com os saltos da fazenda não coincidia duas vezes o golpe e, corta aqui, esburaca além, o pano ficou todo anavalhado. Quando cada qual deu conta do farrapo que tinha na mão, minúsculo como o sanguinho da missa, olharam uns para os outros furiosos.

— Cem cães vos mordam, mais o que fizestes à peça!

— rosnou o Cabrita, cuspinhando de enojado. ,

— Ladrões! — bradava a tia Algodres. — A maldição caia em vossa casa. Oxalá que nem um lençol podre vos reste para mortalha! Ladrões!

O Algodres assistiu de coração alanceado à peleja dos miseráveis. Quanto há pouco, no ataque ao incêndio, se haviam mostrado abnegados, eram agora sórdidos e ferinos. O famélico disputava ao famélico com unhas e dentes o osso a esburgar; o roto disputava ao esfarrapado a roupinha com que abafar-se. Restituídos à miséria, apeados da faina de solidariedade, descobria-se em suspensão o seu resíduo de feras. E, repeso de ter provocado aquela explosão de instintos, o Algodres disse-lhes em voz comovida:

— Tende fé, ainda heis-de ser remediados!»